⚠️ ️ALERTA DE GATILHO: Esta reportagem possui relatos de violência contra crianças que podem ser sensíveis para algumas pessoas.
Passar por algum tipo de violência na infância pode gerar uma série de consequências imensuráveis para a vida de uma criança, que deveria estar sendo protegida em seus direitos fundamentais. Entre os impactos que essas violações trazem, estão traumas e sequelas que reforçam a importância do cuidado com a saúde mental para um desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
No último ano, casos de violência contra crianças e adolescentes registraram um aumento significativo no país. Entre os crimes que tiveram crescimento estão abandono de incapaz (22%), abandono material (34%), maus-tratos (30,3%), subtração de incapaz (28,4%), pornografia infanto-juvenil (42,6%) e exploração sexual infantil (24,%), segundo dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, analisados pela Agência Tatu.
No Nordeste, os crimes mencionados também tiveram aumento de 2022 para 2023, com exceção da exploração sexual infantil, que registrou redução de 2,4% na região. Por outro lado, enquanto no Brasil houve diminuição nos casos de lesão corporal em contexto de violência doméstica (2,2%), no Nordeste, o crime aumentou (5,1%).
Variação percentual de 2022 para 2023 dos crimes contra crianças e adolescentes
Dados são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública referentes à faixa etária de 0 a 17 anos.
Os danos causados à saúde mental e desenvolvimento de uma pessoa são ainda maiores quando a violação ou sofrimento ocorre na primeira infância — período que abrange os primeiros seis anos completos ou 72 meses de vida da criança — conforme explica o médico psiquiatra Wilson Zielak Júnior, que atua no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) em Maceió.
“Nós estamos falando de desenvolvimento neuronal mesmo, os neurônios estão em formação, as sinapses, que são as comunicações entre os neurônios, estão se formando na infância, então, quanto mais nova for a criança, maior será o impacto. Existem estudos, por exemplo, mostrando que quando há traumas nessa fase existem regiões do cérebro que ficam mais finas, menos desenvolvidas, principalmente se for um trauma relacionado à questão sexual”, afirma o médico.
Quanto mais cedo for qualquer tipo de trauma, o impacto vai ser maior
— Wilson Zielak, médico psiquiatra
Violência no ambiente familiar
O cuidado e proteção da dignidade da criança e do adolescente, salvando-os de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, é um dever de todos, segundo o art. 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas essa responsabilidade recai principalmente sobre os pais e responsáveis, no ambiente familiar.
É nesse espaço, todavia, que ocorrem com mais frequência os casos de estupro de vulnerável — crime com maior ocorrência em números absolutos, entre as violências não letais contra crianças e adolescentes. Em 2023, foram registrados 64.237 casos de estupro de vulnerável, crime praticado contra meninos e meninas com 14 anos ou menos. É como se a cada hora, sete crianças e adolescentes fossem estupradas no país.
O número representa um aumento de 7,5% no Brasil, em comparação com 2022, que teve 59.761 casos. No Nordeste, o aumento desse crime foi de 7,1%, com 13.701 ocorrências em 2023 e 12.791 em 2022. Em 64,7% dos casos, o estupro de vulnerável ocorreu dentro de casa.
Casos de estupro de vulnerável ocorridos nos estados do Nordeste
O impacto de violências sofridas no ambiente familiar reflete diretamente no desenvolvimento da criança, que serão sentidos posteriormente em toda a sociedade. Essa afirmação aparece no estudo do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), que mostra que a violência na infância causa prejuízos como danos físicos, estresse tóxico (inclusive relacionado ao racismo) e mudanças de comportamento.
Os danos físicos abrangem traumas físicos, lesões, machucados, hematomas e cicatrizes; e traumas emocionais. Já o estresse tóxico está relacionado a alterações fisiológicas e psicológicas, potenciais prejuízos à memória, aprendizado, emoções e sistema imunológico, e contribuição para o surgimento de doenças crônicas. As mudanças de comportamento podem ocorrer por meio de agressividade, problemas de atenção, ansiedade, depressão, problemas de adaptação escolar e problemas psiquiátricos.
"A criança é um ser em formação, então tudo aquilo que está em seu entorno vai influenciar a sua formação. Escola, vizinhos, família, etc. E, estatisticamente falando, esses abusos, esses problemas, acontecem no meio em que ela está inserida, com pessoas que ela conhece. A maioria dos abusadores ou são da família, ou são conhecidos da criança. Veja, um ambiente que deveria ser de proteção não é, então isso gera um problema muito sério", explica o psiquiatra infantil Wilson Zielak.
Marcas da violência na infância
Além de ser uma grave violação dos direitos humanos, a violência na infância também deixa marcas que são difíceis de superar. Alice* tem 18 anos e afirma que possui sequelas até hoje do abuso sexual que sofreu quanto tinha oito anos.
"Eu fui abusada sexualmente pelo meu padrasto, dos meus 8 aos 9 anos. Quando eu conto o que aconteceu, as pessoas ficam meio que na dúvida: "como assim abuso?", mas é literalmente isso, ele tirou minha virgindade. Na época, minha avó desconfiava, só que eu não morava com ela, então ela falava com a minha irmã para a minha irmã conversar comigo. E aí eu realmente falei com minha irmã e minha avó fez uma denúncia anônima", conta a vítima.
Atualmente, Alice mora com a família de um pai “adotivo”, que é um antigo conhecido da família e se dispôs a acolhê-la desde os 16 anos, enquanto a mãe ainda reside com o abusador. Quando lembra do passado, a jovem relata que ainda sofre com muitos traumas e sequelas.
“Hoje eu sinto que tenho sequelas do que aconteceu. Eu era a pessoa que usava as roupas mais largas possíveis, porque tudo que um dia ele [o abusador] elogiou, eu comecei a ter nojo. Ele falava que amava o meu cabelo cacheado então eu, ainda criança, alisei. Tudo que eu fazia era para ser o menos sexualizada possível. Sempre tive muita ‘nóia’ com a minha autoestima porque, na minha cabeça, alguma parte era culpa minha. Então foram muitas travas que tive que ir liberando com o tempo, e ainda tenho algumas”, descreve Alice, evidenciando o impacto que a violência causou nela.
Ainda de acordo com a vítima, fazer terapia a ajudou muito para se aceitar como é, ao ponto de poder falar abertamente sobre o que aconteceu na infância.
Foi algo que tive que entender e tive que aceitar que eu tenho que conviver comigo mesma. Não dá pra trocar de corpo, não dá pra trocar de história. Então fui procurando viver da melhor forma.
— Alice*, 18 anos, vítima de violência sexual na infância
As consequências deixadas pela violência física e psicológica vividas na primeira infância ainda são lembradas na adolescência de João*, de 12 anos, e Levi*, de 14 anos, filhos adotados pelo publicitário Felipe da Silva*, quando eles tinham 9 e 11 anos, respectivamente.
Segundo o pai solo, os meninos sofreram maus tratos praticados pela mãe e o padrasto, ambos alcoólatras, quando ainda moravam com eles, em Turmalina, interior de Minas Gerais. As agressões ficaram mais evidentes quando eles tinham entre 4 e 5 anos.
“João, o mais velho, tem cicatrizes pelo corpo todo das surras que levava sem motivo. Houve uma situação em que o padrasto inventou uma ‘brincadeira’ onde amarrou uma corda no pescoço dos meninos e puxou, sufocando eles no quintal. Os vizinhos viram, chamaram a polícia e o conselho tutelar. Desse momento em diante, eles foram acolhidos, os direitos da mãe foram destituídos e hoje eles vivem comigo, em Maceió”, expõe Felipe.
Superar toda a experiência negativa demandou muito apoio psicológico, além de outras áreas da saúde. “O rendimento escolar, as relações interpessoais, o temperamento, a confiança, tudo isso foi afetado. Eles fazem acompanhamento psicológico e hoje estão mais tranquilos. Mas já fizeram acompanhamento no CAPSi e no Centro de Referência em Atenção à Criança e ao Adolescente (CRAD)”, diz o publicitário.
Os relatos de violência doméstica são comuns em lares que cuidam de crianças e adolescentes aptos para adoção. Muitas vezes, esses meninos e meninas passaram por algum evento traumático que os levou até as unidades de acolhimento, conforme relata a psicóloga e coordenadora do Grupo de Apoio à Adoção de Alagoas (GAAAL), Fátima Malta.
"Violência é a palavra-chave para essas crianças e adolescentes serem retiradas das famílias biológicas ou mesmo de seus respectivos cuidadores. Porque a violência não se dá apenas no terreno físico, ela ocorre na falta de cuidados básicos, no psicológico, emocional, sexual, exploratório e outros tantos a serem ditos”, afirma a psicóloga.
Quando a criança ou adolescente tem seus direitos violados, isso já é uma violência
— Fátima Malta, psicóloga e coordenadora do Grupo de Apoio à Adoção de Alagoas.
Apoio por meio dos CAPSi
Ter acesso a um serviço gratuito que preste assistência especializada às crianças e adolescentes vítimas de violência é fundamental para cuidar da saúde mental desse grupo. Os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) têm esse propósito: atender esse público-alvo que apresenta prioritariamente intenso sofrimento psíquico.
Para o diretor do CAPSi de Maceió e psicólogo, Marcelo Araújo, a sociedade vive hoje uma epidemia de saúde mental, onde 14% dos adolescentes do mundo vivem com um transtorno mental, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019.
"Hoje as exigências da sociedade, em termos de enfrentamento aos desafios que a vida apresenta, têm sido cada vez maiores e a gente observa que a criança e o adolescente tem se sentindo mais fragilizados", esclarece o diretor.
Em relação às crianças e adolescentes vítimas de violência, o psicólogo explica que o tratamento no CAPSi acontece conforme os sintomas que cada pessoa apresenta. Além disso, o Centro também atua na prevenção da violência, orientando frequentemente os familiares para que saibam como se portar com uma criança mais vulnerável e como evitar determinadas situações de abuso ocorram.
"A gente observa muito as crianças autistas, por exemplo, se você tem uma criança que exige uma dedicação maior, é uma criança que às vezes tem um comportamento mais agressivo, que não responde bem às orientações da mãe, que é muito agitada, então às vezes falta um pouco de paciência e a gente observa que é daí que surge a violência. E é uma coisa que a gente tenta trabalhar com esses pais para evitar", acrescenta o diretor do CAPSi em Maceió.
Segundo levantamento realizado pela Agência Tatu por meio da Biblioteca Virtual em Saúde e informações nos sites das secretarias de saúde estaduais e municipais, em toda região Nordeste existem cerca de 24 CAPSi, sendo que 13** destes estão localizados nas capitais nordestinas.
A quantidade ainda está longe de ser a ideal, considerando a indicação do Ministério da Saúde (MS) de que os CAPSi, que são de responsabilidade municipal, devem atender municípios ou regiões com população acima de 70 mil habitantes.
Em Maceió, o diretor do único CAPSi existente na capital confirma que a demanda é grande para uma capital com população de 957 mil pessoas, segundo dados do último Censo de 2022. Segundo o psicólogo Marcelo Araújo, a própria estrutura física do CAPSi Dr. Luiz da Rocha Cerqueira tem seus limites.
Mapa dos CAPSi nos estados do Nordeste
“A gente tem um serviço que é sobrecarregado. A gente também tem uma dificuldade em estabelecer um ambulatório infanto juvenil de atendimento psiquiátrico e psicológico no território, então termina que é uma concentração de psiquiatras que atende na infância aqui no CAPSi, e aí no território a gente não consegue uma vaga para esse paciente que só precisa de um acompanhamento ambulatorial”, explica o diretor.
A rede pública de saúde também possui uma carência de psicólogos infantis para atendimentos terapêuticos individuais, uma vez que nos CAPSI a equipe multidisciplinar realiza normalmente o tratamento em grupos, conforme descreve Marcelo.
“O CAPSi é para crise. O nome já está dizendo: sofrimento psíquico maior. Então no momento que o paciente sair da crise, desse processo maior de sofrimento, ele é devolvido para o acompanhamento ambulatorial na rede ou até recebe alta, se for um caso que tenha tratamento e cura. Só que como a gente não consegue acompanhamento ambulatorial, alguns permanecem aqui por mais tempo. Por isso a nossa fila de espera é enorme”, conta o diretor do CAPSi em Maceió.
Cuidado com a saúde mental
Em um ponto, todos os especialistas e entrevistados desta reportagem concordam: cuidar da saúde mental das crianças e adolescentes é essencial para o desenvolvimento do ser humano e, consequentemente, de uma sociedade melhor.
O médico psiquiatra Wilson Zielak afirma que a saúde mental é a base do desenvolvimento das potencialidades do ser humano. Desta forma, muitas pessoas que não têm uma boa saúde mental, ou possuem traumas, acabam sendo impedidas de evoluir plenamente em alguns aspectos da vida.
"Parece algo simples, mas não é. Por exemplo, você tem uma capacidade de ir muito adiante, mas devido a alguma questão emocional, como traumas, você pode não ter uma maturidade emocional adequada e não conseguir aproveitar as oportunidades da vida. Não é só o adoecimento, não é só precisar de medicamento, não é só ter que se afastar do trabalho, é realmente desenvolver as suas potencialidades de forma plena", adiciona o médico.
Para o psiquiatra infantil que atua no CAPSi de Maceió, ter uma família bem instruída e receptiva é essencial para a prevenção de casos de violência em ambiente doméstico, tendo em vista que a maioria dos agentes que perpetuam esses traumas estão no ambiente familiar da criança.
O psicólogo Marcelo Araújo reitera a importância de existir um ambiente familiar e comunitário sadio, livre de julgamentos e preconceitos. "Temos que entender que cada indivíduo tem sua singularidade, que deve ser respeitada, e que cada pessoa procura exercer seu espaço de vida. É preciso respeitar o espaço do outro e sem exigir, porque às vezes, em função disso, a criança fica mais fragilizada mentalmente e isso repercute num adoecimento", finaliza.
Como denunciar
Qualquer tipo de violência ou abuso contra a criança e adolescente é crime e é possível denunciar por meio do Disque 100, ou Disque Direitos Humanos, que é vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
O canal de denúncias funciona diariamente, 24h, inclusive nos finais de semana e feriados.
As denúncias são anônimas e podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita para o número 100, pelo whatsapp: (61) 99656-5008, ou pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil, no qual o cidadão com deficiência encontra recursos de acessibilidade para denunciar.
*Um nome fictício foi dado às fontes marcadas com asterisco, como forma de proteger a identidade delas, uma vez que se referem a pessoas que foram vítimas de violência na infância ou possuem ligação direta com elas.
**A reportagem foi atualizada em 29 de julho para acrescentar o CAPSi em São Luís (MA), que não havia sido localizado nos registros oficiais. Contudo, a Ouvidoria do município confirmou, após publicação, a existência desta unidade. Os dados do mapa também foram atualizados.
PUBLICAÇÃO
26 de julho de 2024
EXPEDIENTE
Reportagem: Karina Dantas
Edição: Graziela França
Fotografias: Orlando Costa