Às margens do Rio São Francisco, na cidade de Piaçabuçu, nadadeiras de tubarões ameaçados de extinção secavam ao sol, em cima do telhado de uma casa. Era manhã do dia dois de fevereiro, quando uma denúncia levou fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) até o local, onde apreenderam 42 barbatanas do peixe.
Foi o primeiro flagrante na região da prática conhecida por “finning”, em que os tubarões têm suas barbatanas mutiladas e o resto do corpo descartado, sem chances de sobrevivência.
“É como se cortassem suas pernas e lhe mandassem correr”, compara o professor do Laboratório de Ictiologia e Conservação, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Cláudio Sampaio, que tem liderado o levantamento de informações sobre a pesca e comercialização de tubarões e arraias em Alagoas. “Jogado ao mar, sem as nadadeiras, o animal afunda e morre de hemorragia. É uma morte cruel”, afirma.
Professor Cláudio Sampaio mostra nadadeiras de tubarão apreendidas em fiscalização (Foto: Micaelle Morais/Agência Tatu)
Ilegal no Brasil há quase seis anos, a partir da publicação da Instrução Normativa Interministerial MPA/MMA N° 14, de 26 de novembro de 2012, o finning consiste na ação de “capturar tubarões e raias e aproveitar apenas as barbatanas, que são removidas, descartando o restante do corpo do animal”.
A legislação indica que estes animais devem ser desembarcados com todas as nadadeiras aderidas ao corpo, ou seja, o comércio das barbatanas só é liberado se o peixe inteiro chegar à terra firme.
No caso da apreensão em Piaçabuçu, quem estava em posse das nadadeiras era um atravessador – pessoa que intermedia a venda entre pescador e comprador. Ele não conseguiu comprovar às autoridades o destino do restante da carne dos tubarões, já que não possuía recibos de venda.
“A gente sabe há bastante tempo que a nadadeira é o principal item da pesca de tubarões. Talvez hoje, o quilo da nadadeira seja superior a dez vezes o valor da carne. Então o que as embarcações fazem é: se há uma limitação de espaço de 200 quilos, por exemplo, eu vou transportar 200 quilos de tubarões ou de nadadeiras? Vou preferir as nadadeiras, pois para mim é um negócio. Aí entra a legislação que exige que todo tubarão seja desembarcado com as nadadeiras. Quando desembarcar, o pescador pode cortar e vender separadamente. Se o pescador não tem como provar que também vendeu a carne, por meio de nota fiscal ou recibo, a legislação é bem inflexível nestes casos”, comenta o professor Cláudio Sampaio.
Este foi o primeiro caso de finning registrado e divulgado por pesquisadores em Alagoas. Mas o analista ambiental do Ibama que participou da apreensão, Rivaldo Couto, explica que ocorrências deste tipo já foram registradas pelo órgão em outras regiões do estado.
“Nós já realizamos fiscalização e apreensão de outras barbatanas, que também não tinham comprovação de origem no Pontal do Peba e em Maragogi. As nossas normas só permitem a comercialização desde que o corpo do tubarão seja desembarcado também”, reforça Couto.
Negócio lucrativo
De acordo com os pesquisadores, mesmo proibida, a prática tem acontecido em Alagoas por conta do alto valor de venda das barbatanas de tubarão no mercado internacional, onde chegam a ser comercializadas por uma média de 63 dólares por quilo, o que corresponde aproximadamente a R$ 220 na cotação atual.
A hipótese é que as nadadeiras sairiam de Piaçabuçu para Maceió e então seriam exportadas para a Ásia, onde a nadadeira do animal é símbolo de status e tem caráter afrodisíaco.
“Nos portos grandes, como em Santos, Itajaí, Cabedelo, Natal, Fortaleza, já há uma fiscalização. Então eu imagino que os comerciantes e exportadores, que mandam as barbatanas para Ásia, as buscam em portos menores, onde não há fiscalização eficiente”, considera o professor Cláudio Sampaio.
O analista ambiental do Ibama esclarece que há um planejamento anual no órgão para guiar as fiscalizações em toda a cadeia da pesca, mas que os fiscais também atendem a chamados e denúncias, como no caso de Piaçabuçu.
“Nós não realizamos fiscalização especificamente só de finning, mas sim de espécimes [indivíduos] em geral, onde fazemos análise, abordagem, vistoria de diversos empreendimentos locais e embarcações, além de verificarmos a situação dos pescados, camarões, lagostas, centros de pesca, autorizações e, consequentemente, realizamos outras ações paralelas de espécies ameaçadas. Isso ocorre diversas vezes durante o ano”, expõe Rivaldo Couto.
“Se muitos deles pudessem, catavam o peixe todo do rio”
– Seu Binho, sobre os pescadores de Piaçabuçu
O amanhã fica para depois
O pescador Ailton Pereira dos Santos, mais conhecido como seu Binho, tem 39 dos seus 47 anos dedicados ao ofício. Começou acompanhando seu pai, assim como mais dois de seus irmãos. Hoje, o pescador atua como fiscal da Colônia de Pesca Américo Pereira de Brito, a Z-19, de Piaçabuçu. “Aqui eu sou responsável por coletar os dados referente às pescas dos outros pescadores”, explica.
De acordo com seu Binho, a pesca de tubarões é prática comum na localidade, mesmo envolvendo aqueles que estão ameaçados de extinção.
“Conhecimento a gente tem, só que as pessoas querem sobreviver honestamente. Então, se o pescador coloca uma espinhel lá fora [uma linha com vários anzóis] e quando ele chega tem um tubarão lá, ele vai trazer porque é o lucro dele. Se as abas [nadadeiras] são o que deixa mais lucro pra ele, claro que ele não vai jogar fora, vai vender também. Então, os tubarões de onde o atravessador pegou essas abas foram todos pegos nessa região aqui. Porque tem pessoas aqui que vivem apenas da pesca do tubarão”.
Ainda segundo o pescador, na comunidade Z-19 não são vendidas apenas as nadadeiras, pois afirma que a carne do tubarão também tem valor comercial na região. Ele explica ainda que, tanto pescadores como atravessadores, mesmo sabendo da irregularidade que estão cometendo, preferem arriscar serem pegos pela fiscalização tendo em vista o alto valor comercial dos produtos vendidos.
“Eles não querem ver o amanhã, só o hoje. Não se preocupam com o futuro das famílias deles, dos filhos, netos. Eles querem sempre ir para lá e trazer o máximo que puder”, relata seu Binho.
O pescador conta também que seus colegas de profissão têm certa noção das espécies que estão em extinção. “Hoje com a internet, mesmo que a pessoa não saiba mexer, tem um filho que estuda e sabe. Então ele chega para o pai e diz que o peixe está em extinção. Aí ele diz bem assim ‘tá em extinção pra eles, mas para mim não’. Eles querem sair e trazer o sustento para casa deles a qualquer custo e quanto mais ele puder trazer, para ele é melhor”.
O finning só foi descoberto na comunidade pela fiscalização recentemente, mas seu Binho conta que a prática acontece há muito tempo. “Antes de eu nascer já pescavam [nadadeiras de tubarão]. Para os pescadores, essa pesca não é ilegal. Se você chegar pra ele e disser que determinada espécie ele não pode pegar, ele não vai dizer a você que não vai pegar, só que no momento que ele pega, ele traz”.
Além do caráter cruel da prática, o crime constatado em Piaçabuçu possui o agravante de ter sido cometido contra espécies ameaçadas de extinção. As nadadeiras apreendidas foram levadas para o Laboratório de Ictiologia e Conservação da Ufal, Unidade Penedo, onde foram fotografadas, medidas e as espécies identificadas por meio da literatura. Ao todo, foram analisadas 22 nadadeiras peitorais e 20 dorsais, provenientes de 26 tubarões adultos de seis espécies pertencentes a duas famílias.
Das espécies identificadas a partir das nadadeiras, o Cação Azeiteiro (Carcharhinus signatus) e dois tipos de Tubarão-martelo (Sphyrna lewini e Sphyrna mokarran) estão na lista vermelha nacional de espécies ameaçadas de extinção, sendo classificadas como vulnerável, criticamente em perigo e em perigo, respectivamente.
Os demais, Tubarão-cabeça-chata (Carcharhinus leucas), Tubarão-gralha-preta (Carcharhinus limbatus) e Tubarão-lombo-preto (Carcharhinus falciformis), por sua vez, estão classificados como quase ameaçado e vulnerável na lista internacional The IUCN Red List of Threatened Species. Ou seja, dos 26 tubarões que sofreram com a mutilação das nadadeiras, todos são ameaçados em algum nível.
Veja no infográfico abaixo:
O analista ambiental do Ibama explica ainda que, além da multa aplicada pela prática ilegal, cada espécime de animal ameaçado de extinção representa um acréscimo no valor total que o homem que descumpriu a norma terá que pagar.
“Nós contamos com o apoio da Universidade para identificar a quantidade de espécimes e quais as espécies apreendidas. Então, a multa pode variar de R$ 700 a R$ 100 mil, acrescida do valor de R$ 5 mil por exemplar ameaçado de extinção. A mesma penalidade é aplicada para aqueles que comercializam em mercados ou feiras livres. Se o animal estiver ameaçado de extinção, a captura foi ilegal, o transporte foi ilegal, o armazenamento, comércio e toda a cadeia é ilegal”, relata.
De acordo com o fiscal, mesmo que o atravessador de Piaçabuçu pudesse comprovar a venda do corpo do tubarão, ele ainda seria penalizado pela pesca de animais ameaçados de extinção.
Pesca não manejada
Mas não é somente o finning que tem colocado em risco essas espécies de tubarão. Um estudo dos pesquisadores deste mesmo laboratório da Ufal monitorou, de 2014 a 2017, a pesca e o comércio de tubarões e arraias em Piaçabuçu, o maior produtor de peixes em Alagoas, e em Penedo, município vizinho que se destacou como importante consumidor desses animais.
Os levantamentos revelaram dados assustadores. Na comunidade pesqueira do seu Binho, em Piaçabuçu, foram desembarcados 79.320 kg de tubarões e 67.650 kg de arraias, o que correspondeu a 3,64% da produção local naquele período.
Destes, 67% das espécies pescadas eram ameaçadas nacional ou internacionalmente: Cação Lixa (Ginglynostoma cirratum), Cação Frango (Carcharhinus porosus), Cação Fidalgo (C. obscurus), Cação Azeiteiro (C. signatus), Cação Sicuri (C. perezi), Tubarão-lombo-preto (C. falciformis), Tubarão-cabeça-chata (C. leucas), Tubarão-gralha-preta (C. limbatus), Tubarão-mako (Isurus oxyrinchus), Tubarão Martelo (Sphyrna lewini, S. mokarran), Arraia Jamanta (Manta birostris) e Arraia Boca de Gaveta (Mobula tarapacana).
Também foi constatado um aumento na pesca destes animais durante o período de monitoramento, sendo, respectivamente, para tubarões e arraias, de 13.869 kg e 11.443 kg em 2014, para 24.958 kg e 20.013 kg em 2017. Os números representam um aumento de 80% no desembarque de tubarões e 75% de arraias.
Já em Penedo, o que chama a atenção é o consumo desses animais, incluindo indivíduos recém-nascidos, jovens e espécies ameaçadas. Em oito pontos de vendas, os pesquisadores realizaram levantamento para descobrir como as espécies de elasmobrânquios (peixes cartilaginosos) são comercializadas, em que quantidade, quais são os grupos etários e como os peixes são processados antes da venda.
Durante os três anos de monitoramento, foram registradas 373 espécimes de cinco famílias e o mais chocante: recém nascidos de tubarões e arraias correspondiam a 70,5% do total de peixes comercializados, enquanto jovens representavam 23% e adultos 6,5%.
Veja no gráfico abaixo:
O professor Cláudio Sampaio evidencia o grande prejuízo que a pesca descontrolada de animais tão jovens tem causado à natureza. Características como maturidade sexual tardia, baixa fecundidade e alta longevidade tornam as arraias e os tubarões o grupo de peixes marinhos mais ameaçado do Brasil.
“Imagine um tubarão que só atinge a maturidade sexual aos 18 anos, em média. A gestação desse bicho vai de 9 a 11 meses, e eles geram poucos filhotes. Se a gente está pegando os recém-nascidos, quem é que vai formar a próxima geração? É uma coisa para se preocupar”, alerta o especialista.
Foz do Rio São Francisco: berçário dos tubarões
Ainda segundo o professor, há o objetivo de reconhecer a Foz do Rio São Francisco como uma área de berçário para algumas espécies de tubarões, inclusive as que estão ameaçadas de extinção. “É uma área em que a gente só vai encontrar recém-nascidos, isto é, a gente não pega adultos, não pega jovens”.
O local é escolhido pelos pais que buscam reduzir a pesca dos filhotes. “Uma área de berçário é uma área com alta produtividade, baixa predação e, assim, consegue-se elevar a taxa de natalidade. Essas áreas são geralmente regiões costeiras e foz de rios. Mas no caso do São Francisco, essa área tem sido afetada pelo assoreamento, pesca não manejada, poluição e aumento do turismo – o que gera lixo e ruído na água”, declara Sampaio.
Dois exemplares recém-nascidos de tubarão-martelo encontrados em mercado de Penedo (Foto: Micaelle Morais/Agência Tatu)
Questão de saúde pública
Além da violência cometida aos animais, o consumo da carne de tubarão oferece riscos à saúde humana, como explica o especialista.
“A carne de tubarão não é para ser consumida constantemente. Por ser um predador de topo [da cadeia alimentar] ele vai acumulando biotoxinas, metais pesados, mercúrio, uma série de compostos. Essas substâncias entram na cadeia quando são bioacumuladas por pequenos peixes. Estes, quando são capturados por peixes maiores, repassam essas substâncias até chegar no elo mais alto”, ressalta Sampaio, ao lembrar que o homem entra neste ciclo ao consumir a carne de tubarão.
Para o professor, o consumo da carne de tubarão acontece também por falta de informação, já que muitas pessoas não sabem que a carne conhecida e rotulada genericamente como “cação”, se refere, na verdade, a este animal.
“A gente sabe que tubarão é um nome que tem um marketing prejudicado, uma péssima reputação, então cação é uma coisa mais suave”, aponta.
Outro risco à saúde surge da forma como são armazenados as nadadeiras dos animais. Como a pesca e comercialização de muitas dessas espécies são proibidas, o armazenamento acaba sendo feito de maneira que propicia a proliferação de fungos e bactérias.
“Se a pessoa sabe que aquilo é proibido, ela vai procurar esconder. E onde eles escondem não é o melhor local para armazenar um alimento. É muito úmido, não é ventilado. Então aparecem ratos, baratas e uma série de insetos que se interessam por esse material. Com isso, as pessoas colocam naftalina para que esses bichos não apareçam. Ou seja, comer esse alimento é a mesma coisa de fazer um chá ou uma sopa com um pouco de naftalina. É um problema de saúde coletiva”, expõe o professor, ao ressaltar que nas nadadeiras apreendidas em Piaçabuçu já foram identificados pelo menos três tipos de fungos.
Educação ambiental e conscientização
Fator importante no combate à pesca e consumo desenfreados desses animais é a conscientização. Por isso, o projeto Tubarões e Arraias de Alagoas, uma iniciativa de educação ambiental do Laboratório de Ictiologia e Conservação da Ufal, com o apoio do Instituto Linha D’água e Meros do Brasil, busca capacitar, conscientizar e sensibilizar as comunidades do Litoral de Alagoas para a necessidade de conservar os ecossistemas e as espécies ameaçadas de tubarões e arraias.
“O trabalho da gente é orientar e buscar alternativas para o pescador ganhar mais, utilizando técnicas simples que possam elevar o preço do produto. Então são formas que a Engenharia de Pesca, associada à biologia, pode colaborar para a conservação dessas espécies”, conta Sampaio, que também é coordenador do projeto.
“Medidas que podem ser tomadas para evitar a prática do finning são a informação e uma fiscalização mais ativa. Pois, às vezes, o valor que é pago em uma multa não faz com que o comerciante, que cometeu o delito, pague”.
Porto em Piaçabuçu (Foto: Micaelle Morais/Agência Tatu)
Seu Binho conta que a Colônia também tenta conscientizar e informar os pescadores toda vez que há uma alteração na legislação, mas que nem sempre há retorno por parte dos profissionais.
“Geralmente, quando baixa uma portaria, a Colônia chama as pessoas e explica. Todo pescador sabe, por exemplo, que não se pode pescar na região da gente com malha menor de que 50 milímetros [entre um nó e outro], porque saiu uma portaria do Ibama sobre isso. Se ele obedecesse, o Robalo que chega aqui seria na base de 700g a 800g, porque um peixe menor que esse passaria na malha e não teria como pegar o pequeno. Mas aí ele não tem consciência disso. Então, se ele tem quem compre, vai vender”.
“Muitos chegam a dizer que o que Deus fez nunca vai acabar”
– Professor Cláudio Sampaio, sobre o pensamento de pescadores em relação a animais ameçados
Para seu Binho, a atitude dos pescadores pode ser atribuída à educação precária vinda desde a infância e também por eles acreditarem que esses animais nunca desaparecerão, de fato. “Eu acho que os pais, quando acompanham as crianças deveriam instruir eles, para ficarem sabendo o que é certo e o que é errado. Se ele fizesse assim ‘olha meu filho, esse peixe pequeno nós não vamos pegar, mais tarde ele vai estar grande, vai dar um valor comercial pra gente, aí a gente vem e pesca’, seria muito melhor”, completa seu Binho.
O professor Cláudio Sampaio destaca ainda as ações realizadas visando conscientizar a comunidade, principalmente, os pescadores. “Nós conseguimos perceber que há uma grande resistência dos pescadores em entender essa problemática. Muitos chegam a dizer que o que Deus fez nunca vai acabar”.
Mesmo sendo animais fortes, predadores e fundamentais para o equilíbrio de toda cadeia marinha, os tubarões não possuem a mesma resistência às ações humanas como aos fenômenos da natureza. “Os tubarões existem há mais de 400 milhões de anos. Eles já suportaram muitas alterações da natureza, mas a pesca não manejada e a poluição, isso eles não conseguem aguentar”, finaliza o professor.
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