“Lamentavelmente ainda é dessa forma, através de baldes, copos e caixas no chão, para ainda tomarem banho, lavar roupa, fazer essas coisas”. O relato é de Manuel Oliveira, morador de Traipu, município na região Agreste de Alagoas. Essa é a forma de armazenamento de água para muitas pessoas nessa localidade e ainda comum para mais de 4,8 milhões de brasileiros que ainda residem em domicílios sem água encanada. Deste total, cerca de 67% está na região Nordeste, totalizando 3,2 milhões de pessoas.
Segundo dados do Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em fevereiro deste ano e analisados pela Agência Tatu, 12 Unidades Federativas (UFs) estão acima da média geral do país quando o assunto é falta de acesso à água canalizada, que é de 2,4%. Todas essas UFs mencionadas estão nas regiões Nordeste e Norte.
No mapa abaixo, é possível perceber a disparidade entre a situação do Nordeste e Norte em relação às demais regiões do país, no que se refere ao índice mencionado. Os estados com a maior proporção de moradores sem água canalizada são o Amazonas (9,66%), Acre (9,61%), Pernambuco (9,24%), Paraíba (8,87%) e Alagoas (7,99%).
Percentual de domicílios brasileiros sem água encanada, por estado
“Dentro de minha comunidade Quilombo Mumbaça, em Traipu, nós até temos uma rede de água encanada, mas só existe a rede, sem fornecimento de água. A população hoje não passa sede por conta das fontes de água natural que temos e por conta de poços artesianos”, explica Manuel Oliveira, que é coordenador estadual das comunidades remanescentes de quilombolas de Alagoas.
Em Traipu, estima-se que 10.387 pessoas vivem sem água canalizada, o que representa quase metade (44%) da população do município. Apesar da alta taxa, a cidade ocupa o 15º lugar quanto à proporção de moradores sem água canalizada em todo o estado. Os campeões desse ranking são Ouro Branco (69,6%), Cacimbinhas (68,3%) e Canapi (65,4%), todas no sertão de Alagoas.
Em comparação com o último Censo Demográfico do IBGE, em 2010, houve uma redução no percentual de domicílios que não possuem água canalizada, de 6,8% para 2,4% em todo o país. Já em 2000, o percentual de domicílios sem canalização era de 12,4%.
Condição de canalização de água em domicílios particulares permanentes no Brasil
Questionado sobre as formas que as famílias encontram para ter algum acesso à água, Manuel explica que alguns domicílios de Traipu, bem como escolas e postos de saúde, são abastecidos por carros-pipa, mas a quantidade é insuficiente. Já os moradores que residem mais próximo do Rio São Francisco, que margeia a cidade, “pegam água do rio naturalmente, tanto para beber como para cozinhar, para tomar banho, para tudo”.
Segundo a pesquisadora Tamara Zambiasi, que é PhD em Financiamento e Governança da Água na Universidade de Cambridge, as disparidades regionais no acesso ao saneamento básico no Brasil são evidentes e refletem as profundas desigualdades econômicas do país.
“A carência de infraestrutura básica, como redes de distribuição de água e sistemas de tratamento de esgoto, figura como um dos principais entraves para o avanço do saneamento em regiões menos desenvolvidas. A ausência de investimentos adequados nessa infraestrutura resulta em serviços precários ou inexistentes, impactando negativamente na qualidade de vida e na saúde da população”, afirma Zambiasi.
Para a geógrafa, os investimentos públicos diretos no saneamento são baixos e a distribuição desigual de investimentos no setor apenas reforça um ciclo de desigualdades, onde as regiões menos favorecidas continuam recebendo menos recursos, perpetuando suas condições precárias de saneamento.
“O setor de saneamento não se encaixa em lógicas puramente financeiras, pois é uma atividade de capital intensivo, cuja recuperação do investimento demanda longos prazos. Além disso, a água não é uma mercadoria produzível e está sujeita à disponibilidade natural. Sendo um serviço essencial, o saneamento não deveria ser limitado por modelos estritamente baseados em financiamento, pois dessa maneira perpetua um sério problema em relação ao acesso à água no país”, relata a pesquisadora.
Solução para a falta de acesso à água
A resolução do problema para os quase 5 milhões de domicílios brasileiros sem água encanada não se limita à falta de investimentos públicos e a uma maior participação de empresas privadas. De acordo com a pesquisadora Tamara Zambiasi, essa é uma abordagem simplista que desconsidera a complexidade do setor.
“Exemplos internacionais, como Alemanha, França e Inglaterra, demonstram que a privatização nem sempre garante melhores resultados a longo prazo, podendo até mesmo levar à reestatização de empresas de saneamento devido à prestação precária de serviços e pelo reconhecimento de que o setor de saneamento nem sempre é rentável a longo prazo”, diz.
“Não se pode esperar que o mercado resolva as desigualdades regionais; essa é uma responsabilidade do Estado”
Tamara Zambiasi, geógrafa e PhD em Financiamento e Governança da Água
A pesquisadora também contextualiza relatando que alguns estudos já apontam que as melhores práticas de saneamento frequentemente ocorrem em serviços públicos municipalizados, devido ao fato de que o ente local está mais próximo das realidades e necessidades específicas das comunidades que atende.
“A meu ver, não há uma solução única e direta para o problema do acesso à água no Brasil. Mesmo a municipalização do serviço esbarra na fragilidade técnica dos projetos elaborados pelas prefeituras. No entanto, um primeiro passo importante poderia ser devolver o controle do serviço à população, encarando-o como um serviço público essencial, não sujeito às lógicas de mercado”, conclui Tamara.