O rádio ligado
O rádio ligado
Avenida Comendador Francisco de Amorim Leão, 75Reunidos na sala de um pequeno apartamento no bairro de Mangabeiras, familiares de Nilza Ferreira de Siqueira, de 80 anos, receberam a reportagem ainda sem acreditar na recente perda da matriarca, ocorrida dois meses antes da entrevista. “Quando ouço alguém bater na porta, penso instintivamente que é ela”, lamentou a enfermeira Amanda Ferreira de Siqueira.
Nilza, filha mais velha de sete irmãos, era o porto seguro da família. Mesmo idosa, era ativa e ainda dirigia o carro da família, um Ford Focus, contrariando os filhos. Mulher de fé, tinha o coração grande ao ajudar quem precisava e era bem quista na vizinhança.
Ao longo das décadas, a residência dos Ferreira de Siqueira passou por reformas estruturais, já que apresentava rachaduras de tempos em tempos. As novas fissuras abertas no dia do tremor, no entanto, se estenderam até as emoções da idosa. Enquanto trocava a fralda do neto Gabriel, dona Nilza sentiu o chão tremer e viu os livros da prateleira do quarto virem abaixo em poucos, mas desesperadores segundos. Uma das mãos alcançou o telefone e ligou para a filha que estudava pós-graduação. “Ela estava apavorada. Daquele dia em diante o medo passou a fazer parte da rotina da minha mãe”, relembrou Amanda. Muito abatida, a enfermeira revelou que sofria de depressão agravada ainda mais pelo luto.
“Minha irmã cuidou da gente como mãe. Nós a víamos como uma guerreira tão forte que nada poderia abalar toda aquela força. Infelizmente, essa situação mostrou o quanto ela sofria calada”, desabafou o músico Neilton Santos Ferreira, irmão da idosa.
Após a conversa no apartamento, seguimos até a casa da família. Ao chegar ao endereço, o som de um rádio ligado ecoava pelo terreno e podia ser ouvido da rua, igualmente deserta. “Ela dizia que manter o som ligado dava a impressão de ter mais alguém em casa. Podia também inibir possíveis invasões”, explicou Neilton. Os móveis, feitos sob medida, estavam cobertos. Uma fina camada de poeira pairava sobre cada objeto, inclusive o pequeno rádio deixado na suíte do casal.
A casa, ampla e arejada, respirava as memórias de quase meio século de casamento. Nascida em Maceió, ela conheceu o esposo, José Siqueira Filho, ainda no Ensino Médio e formou família quando ambos moravam no bairro do Prado, na região central da capital. Dos 46 anos de casados, 40 deles foram vividos no Pinheiro. “Moramos alguns anos no conjunto Divaldo Suruagy – também condenado pela Defesa Civil – e depois nos mudamos para esta casa”, explicou a enfermeira.
“Assim que vimos a gravidade da situação passamos a pedir para nosso pais saírem daqui. Eles aceitaram depois de muita insistência nossa, mas mesmo assim voltavam quase que diariamente dando alguma desculpa”, disse Amanda. “Colocar comida para o cachorro, encontrar algum vizinho. Tudo era motivo para eles passarem horas aqui”, acrescentou a enfermeira. “Quando ela saía com a desculpa de ir à lotérica, por exemplo, eu sabia que depois ela ia desviar a rota com meu pai”, concluiu Amanda, com olhar vago em um dos balcões da cozinha.
O casal de idosos precisou se mudar em abril de 2019 para um apartamento emprestado em outro bairro, mobiliado com a ajuda da família. Uma cirurgia para extrair um câncer na próstata de José Siqueira obrigou o casal a deixar o imóvel por causa do pós-operatório delicado. “Desde então ela passou a chorar mais ainda, pois tinha vários medos: medo de meu pai morrer, de abandonar a casa e medo de nos deixar sem um teto para viver”, relembrou Amanda. Hipertensa, ela também lamentava não poder mais reunir a família em um único ambiente, o que lhe causava quadros extremos de ansiedade.
Em 17 agosto de 2019, a idosa deu entrada na emergência de um hospital particular sentindo uma forte dor abdominal e logo foi encaminhada para a UTI. Horas depois, Nilza morreu de parada cardíaca.
No dia anterior eles visitaram o antigo lar, almoçaram em um supermercado próximo e ficaram fazendo planos até a madrugada. “Me aposentei na terça e ela partiu no sábado. A gente queria aproveitar a velhice para viajar”, lamentou o engenheiro José Siqueira, em poucas e doloridas palavras, com saudades da esposa.
No dia seguinte ao sepultamento, a família foi até a casa do Pinheiro, encontrou o rádio ligado e, decidiu que tudo ficaria como estava.
José Siqueira permaneceu dentro do carro, sem condições de entrar em seu baú de memórias sem seu maior tesouro. Até hoje quem encontra com ele, procura por ela. “O mais difícil é ter de planejar a vida sem Nilza”.
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“,”nextArrow”:”“,”autoplay”:false,”autoplaySpeed”:5000,”rtl”:false}’ dir=”ltr”> O cego que tudo vê Sem estrutura Irremediável InsonesPublicado em 11 de dezembro de 2020
Reportagem: Dayane Laet
Fotografias: Jonathan Lins
Diagramação: Lucas Thaynan