Desde 2016, moradores e empresários de cinco bairros de Maceió, Alagoas, vivem em torno de um dos maiores desastres ambientais já causados pelo homem. A extração de sal-gema realizada pela Braskem foi apontada pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) como a responsável pelo afundamento do solo em cinco bairros da capital alagoana, que expulsou mais de 60 mil moradores de suas casas, além de trazer diversos outros problemas socioambientais à cidade.
Em dezembro de 2020, o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual e a Braskem assinaram um Termo de Acordo Socioambiental onde a empresa se comprometeu a reparar, mitigar ou compensar danos ambientais, sociais e urbanísticos causados.
Para identificar quais os danos, a Braskem deveria contratar empresas para realizar um diagnóstico e apresentar um plano de ação. Na cláusula 64 do subcapítulo IV do documento consta a determinação de que o diagnóstico deveria ser feito com “independência técnica em todas as atividades de coleta, pesquisa e análise de dados”. Assumindo isenção e independência, a empresa Diagonal realizou o diagnóstico sociourbanístico e a empresa Tetra Tech realizou o diagnóstico ambiental. Os textos foram apresentados como parte do Plano de Ações.
No entanto, a Agência Tatu constatou que já houve uma ligação societária indireta entre Braskem, Diagonal e até mesmo com a Tetra Tech, empresa contratada para realizar o diagnóstico ambiental. A descoberta foi possível por meio da ferramenta CruzaGrafos, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que reúne cruzamento de dados públicos de empresas disponibilizados pela Receita Federal do Brasil.
Vítimas e pesquisadores do caso apontam falhas e pedem a anulação dos diagnósticos. O Ministério Público Federal afirmou que vai apurar as alegações.
Entenda a ligação
Dentro do Quadro de Sócios e Administradores (QSA) da Braskem existem dez conselheiros de Administração, segundo os dados declarados à Receita Federal. Um deles é Gesner José de Oliveira Filho, como consta no próprio site da empresa.
Em uma rápida pesquisa no site transparencia.cc, que compila dados públicos da Receita Federal do Brasil, é possível verificar que Gesner é citado como administrador do Consócio GO & Associados, empresa que esteve ativa entre 2011 e 2018, um ano após Gesner ocupar o cargo de conselheiro na Braskem.
Apesar da extinção dessa empresa, o empresário continua como sócio administrador da GO Associados Consultoria Empresarial LTDA, ativa desde 2000 e que também fazia parte de uma sociedade consorciada com a empresa extinta.
No quadro de sócios da GO Associados Consultoria Empresarial LTDA, aparece a empresa Ambiente Brasil Engenharia como uma sociedade consorciada.
Já a Ambiente Brasil Engenharia teve relação em sociedade consorciada com a Consórcio Sondotecnica – ENCIBRA – Ambiente Brasil, que teve a situação cadastral baixada em 2012, mas o administrador José Antonio Mazzoco permanece com nome ativo na Receita Federal como administrador do Consórcio Sondotecnica-Diagonal.
A empresa Consórcio Sondotecnica-Diagonal tem sociedade consorciada com a Diagonal Empreendimentos e Gestão de Negócios LTDA (01.115.194/0001-33).
Além disso, o CruzaGrafos também mostra uma ligação indireta entre a Diagonal e a Tetra Tech. A relação já existiu por meio de uma sociedade consorciada entre o Consórcio Diagonal CONCREMAT-IEME (08.030.886/0001-28), a CONCREMAT (33.146.648/0001-20) e o Consórcio TETRATECH-CONCREMAT (35.850.251/0001-40), que mantém sociedade com a Tetra Tech América do Sul (56.088.990/0001-16).
Vítimas e pesquisadores pedem anulação de diagnóstico
Os moradores afetados pelo afundamento de solo provocado pela Braskem e pesquisadores contestam dados e informações do Plano de Ações Sociourbanísticas elaborado pela Diagonal, empresa contratada pela própria Braskem para realizar o diagnóstico.
O Plano foi divulgado em março deste ano durante uma escuta pública com a população afetada. Na ocasião, o presidente da Associação dos Empreendedores no Pinheiro e Região Afetada pela Braskem, Alexandre Sampaio, fez vários questionamentos, mas não obteve resposta.
Sampaio aponta dois fatores pelos quais os moradores pedem a anulação do diagnóstico. “No acordo, foi estipulado R$722 milhões como valor máximo a ser reparado para todos os danos extrapatrimoniais. Como pode estipular um valor antes de um diagnóstico?”, questiona o presidente da Associação.
Alexandre, que integra também o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB), ainda acusa a empresa de ter outras ligações com a Braskem. “No próprio acordo, já se define as empresas que farão os diagnósticos. A Diagonal tem ligação com Odebrecht, hoje Novonor, que é controladora da Braskem e acompanhou a Diagonal em vários momentos. E simplesmente uma declaração de isenção e independência já basta?”, questiona novamente o empresário. “Estamos sendo vítimas de um segundo crime: o de forjar um diagnóstico para se limitar ao valor já definido no acordo”.
As vítimas também cobram transparência quanto ao valor pago pelas consultorias. Além do diagnóstico realizado pela Diagonal, a Tetra Tech realizou o Estudo Ambiental para avaliar e identificar os impactos da extração de sal-gema. O resultado foi apresentado em escuta pública.
Dossiê questiona análise apresentada
Um dossiê crítico foi elaborado de forma voluntária e assinado por vários especialistas e movimentos sociais, apontando as inconsistências na análise técnica da Diagonal. De acordo com Alexandre, o documento foi entregue ao Ministério Público Federal, que já pediu os esclarecimentos à Braskem.
A partir das constatações, a Associação dos Empreendedores no Pinheiro e Região Afetada espera ser atendida em quatro solicitações:
- Anulação do diagnóstico realizado pela empresa Diagonal;
- O valor do pagamento da nova empresa ser depositado pela Braskem em uma conta judicial;
- Uma empresa sem vínculo com a Braskem para realizar o novo diagnóstico;
- Participação das vítimas no diagnóstico e no objeto de trabalho, de modo transparente, ético e justo.
Uma das autoras do contradiagnóstico é a professora Natallya Levino, doutora em Engenharia de Produção e graduada em Ciências Econômicas e Administração. Ela aponta fragilidades do documento produzido pela Diagonal e cita três elementos que comprovariam a contestação.
“Os termos utilizados para caracterizar o desastre ambiental são minimizados ao tratar o caso como evento/fenômeno geológico, dando margem ao entendimento que se trata de um fenômeno natural. A metodologia não ficou clara, sendo que a amostra utilizada pela coleta e os dados fornecidos pela Braskem podem mascarar os danos reais. E o terceiro ponto é que as escutas tiveram tempos restritos para as perguntas e as respostas não corresponderam”, pontuou Nathallya.
Essas observações e outros argumentos foram apresentados em uma audiência pública no Senado Federal, no dia 8 de maio deste ano, com a presença de várias autoridades, órgãos que acompanham o caso e pesquisadores. Os questionamentos do dossiê foram resumidos aos participantes pela professora Camila Dellagnese Prates, doutora em Sociologia, que chamou o diagnóstico de “maquiagem de dados”.
A pesquisadora defende que o Termo de Acordo seja refeito: “Solicitamos que a Diagonal nos apresente os dados primários do diagnóstico, mas ela corroborou com os nossos argumentos ao dizer que não tem esses dados, porque ela recebe dados tratados pela empresa Braskem. Não é possível legitimar a construção da realidade restrita a versão da Braskem, porque ela transforma a realidade em ficção. É preciso que o Termo de Acordo Socioambiental seja refeito e que o diagnóstico trate a situação como um desastre ambiental”.
Jurista defende investigação
Procurado pela Agência Tatu para comentar o caso do ponto de vista jurídico, o advogado Adriano Argolo defende que o caso seja investigado. “O fato de a própria Braskem reconhecer que um dos conselheiros já teve participação em um consórcio que faz ligação indireta com a Diagonal põe em xeque o laudo realizado. O Ministério Público Federal precisa investigar com urgência e, sendo confirmada, o diagnóstico e o próprio acordo devem ser anulados”, provoca.
Mesmo que atualmente não exista ligação entre as empresas, deve-se considerar a questão ética e moral, que visivelmente compromete o trabalho – Advogado Adriano Argolo
Argolo observa que questões éticas e morais não podem ser desconsideradas: “Mesmo que atualmente não exista ligação entre as empresas, deve-se considerar a questão ética e moral, que visivelmente compromete o trabalho, já que a Diagonal pode beneficiar a Braskem. Além disso, há vários outros aspectos desse laudo sendo contestados pelos moradores”.
MPF vai apurar denúncias
A Agência Tatu buscou um posicionamento do Ministério Público Federal com relação à constatação de que já houve ligação societária entre as empresas e também a respeito dos questionamentos das vítimas da Braskem. O órgão informou que “desconhece que haja qualquer relação societária entre a Braskem e a Diagonal, mas que apurará as alegações apresentadas, assim como os diversos questionamentos apresentados durante as escutas públicas de março”.
Sobre o valor do contrato com a Diagonal, o MPF afirmou que não foi informado, “uma vez que a obrigação firmada no Termo de Acordo se refere à execução do serviço”.
Braskem nega relação
Em nota, por meio da assessoria de Comunicação, a Braskem mantém o posicionamento de independência com a Diagonal. “Não existe relação societária entre as empresas Braskem e Diagonal, assim como não há qualquer relação entre o Sr. Gesner de Oliveira e a empresa GO Associados com a Diagonal”, informou.
Apesar de ocupar o cargo de conselheiro há seis anos, de coordenador do Comitê de Conformidade e Auditoria Estatutário da Companhia desde 2022 e ser indicado pela acionista Novonor, antiga Odebrecht, a Braskem afirma que “o sr. Gesner de Oliveira integra o Conselho de Administração da Braskem como conselheiro independente e possui mandato por prazo determinado”.
A Braskem reconhece que o consórcio que aparece no esquema societário constatado pela Agência Tatu existiu, mas que foi encerrado em 2018, como a própria reportagem apresentou.
“Segundo informação da empresa GO Associados, da qual o Sr. Gesner é sócio, em 2011 ela participou de um consórcio constituído pelas empresas GO Associados S/S Ltda. (Empresa-Líder); Albino Advogados Associados; JHE Consultores Associados Ltda. e Ambiente Brasil Engenharia Ltda. Esse consórcio foi encerrado em 2018 conforme comprovante de inscrição e situação cadastral da Receita Federal”, disse a Braskem.
Sobre a escolha da consultoria Diagonal para desenvolver o diagnóstico que subsidia o Plano de Ações Sociourbanísticas (PAS), a Braskem informou que “seguiu cláusula de independência técnica e foi pautada pela reconhecida experiência da empresa e qualidade de atuação”.
Apesar da cobrança por transparência por parte dos moradores, pesquisadores, movimentos sociais e de órgãos fiscalizadores, a Braskem também defende que o diagnóstico contou com a participação da sociedade por meio de quatro escutas públicas e que o documento ficou disponível na internet. “O diagnóstico está em fase de consolidação, levando em consideração as sugestões e comentários feitos durante as escutas”, completou.
Diagonal defende isenção e independência
A empresa contratada pela Braskem, a Diagonal, também respondeu à Agência Tatu por e-mail. “A Diagonal não tem e nunca teve relação indireta com a Braskem. A única relação da Diagonal com a Braskem é de contratada. A Diagonal estabeleceu a primeira relação contratual com a Braskem para atuação em Maceió”, informou.
Quanto ao questionamento de tratar a situação como evento geológico, a Diagonal justificou: “Os termos adotados constam no relatório do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), empresa pública que avaliou e definiu tecnicamente a situação de Maceió e a nomenclatura técnica correspondente, que vem sendo adotada ainda em outros documentos técnicos e jurídicos relacionados a Maceió”.
No entanto, mesmo utilizando o termo fenômeno ou evento, a CPRM deixa claro nos relatórios de estudos sobre a instabilidade do terreno dos bairros que a situação foi provocada. ”O relatório é conclusivo e aponta que está ocorrendo a desestabilização das cavidades provenientes da extração de sal-gema, provocando halocinese (movimentação do sal)”, afirma o documento Perguntas e Respostas sobre o relatório.